Bibliografia Activa - Pórticos e Posfácios
(Em uso nas edições posteriores a 1955, data da Edição Comemorativa dos 25 anos do romance)
Eu devia este livro a essa majestade verde, soberba e enigmática, que é a selva amazónica, pelo muito que nela sofri durante os primeiros anos da minha adolescência e pela coragem que me deu para o resto da vida.
E devia-o, sobretudo, aos anónimos desbravadores, que viriam a ser meus companheiros, meus irmãos, gente humilde que me antecedeu ou acompanhou na brenha, gente sem crónica definitiva, que à extracção da borracha entregava a sua fome, a sua liberdade e a sua existência. Devia-lhes este livro, que constitui um pequeno capítulo da obra que há-de registar a tremenda caminhada dos deserdados através dos séculos, em busca de pão e de justiça.
A luta de cearenses e maranhenses nas florestas da Amazónia é uma epopeia de que não ajuíza quem, no resto do Mundo, se deixa conduzir, veloz e comodamente, num automóvel com rodas de borracha -- da borracha que esses homens, humildemente heróicos, tiram à selva misteriosa e implacável.
FERREIRA DE CASTRO
Os homens transitam do Norte para o Sul, de Leste para Oeste, de país para país, em busca de pão e de um futuro melhor.
Nascem por uma fatalidade biológica e quando, aberta a consciência, olham para a vida, verificam que só a alguns deles parece ser permitido o direito de viver. Uns resignam-se logo à situação de elementos supérfluos, de indivíduos que excederam o número, de seres que o são apenas no sofrimento no vegetar fisiológico de uma existência condicionada por milhentas restrições. Curvam-se aos conceitos estabelecidos de há muito, aceitam por bom o que já estava enraizado quando eles chegaram e deixam-se ir assim, humildes, apagados, submissos, do berço ao túmulo -- a ver, pacientemente, a vida que levam outros homens mais felizes.
FERREIRA DE CASTRO
Do «Pórtico» de ETERNIDADE (1933)
Eu sei que quando a Humanidade se encontrar dividida em duas épocas distintas -- a que obedecia, mísera, efémera, desgraçada, à lei da morte e a que sobre essa lei triunfou -- tu, meu irmão, estarás tão longe de nós e serás tão diferente, que até estas inumeráveis vidas que têm morrido não querendo morrer, parecer-te-ão lendárias, mesquinhas, tristes coisas que não se pertenciam, rebanho de sombras que cobria, inutilmente o planeta inteiro. Então, todos os séculos que já vivemos e que viveremos ainda sob o despotismo da morte, a odiarmo-nos uns aos outros, a massacrarmo-nos uns aos outros, a expoliarmo-nos uns aos outros, parecer-te-ão a ti que triunfaste da morte, e dos instintos, que és inteligência e não paixão, compreensão e não ressentimento, uma vasta, sombria e muda planície.
FERREIRA DE CASTRO - Eternidade, 14.ª edição, Lisboa, Guimarães Editores, 1989.
Do «Pórtico» de TERRA FRIA (1934)
A nostalgia deve ter nascido numa ilha e só numa pequena ilha se compreende, integralmente, o subtil significado da distância. Essa sufocação que dá a terra sem continuidade, como se o aro líquido que a estrangula se viesse fechar também em volta da nossa garganta, desperta constantes rebeldias e constantes impotências, acorda mil sentimentos ignorados, remexe, tortura, cava fundo na alma até o momento de esta se submeter por falta de mais energias.
Atrai-nos, porém, o confronto entre aqueles a quem as ilhas tornam inquietos até a neurastenia, aos grandes desesperos íntimos, e os que vivem apáticos, há muitos séculos, nos fundões dos continentes, que herdam a resignação, como se fora uma tara, e parecem não atentar, sequer, no limite do seu mundo terreno. [...]
É especialmente, nas gentes que vivem entre cadeias de montanhas que vamos encontrar, de novo, o homem metido em si próprio, o homem que reduziu a vida à árdua conquista do pão quotidiano e o enigma do infinito a uma simples crença, que colocou ao canto da alma como um bordão, para dele se servir nos momentos de vicissitude ou quando a morte lhe bate à porta. Tradicionalista, página viva da antropologia, a sua atitude ante o mundo de hoje dir-se-á igual à dos seus maiores perante o mundo de ontem e de todos os dias que já se perderam no cinerário do tempo. Mas não é assim. Agora e logo, neste raciocínio, naquela fala, no desenrolar das ambições e dos intentos, descobre-se a força da evolução que o vai penetrando, hoje um pouco, amanhã mais, num trabalho lento de pua furando granito.
FERREIRA DE CASTRO - Terra Fria, 12.a edição, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1980
Do «Pórtico» de A TEMPESTADE (1940)
Os homens, na sua maioria, não se compreendem uns aos outros. Aferram-se ao seu egoísmo, a reacções primitivas, a ideias feitas, a prejuízos remotos, uns; entregam-se à submissão, os outros, os mais fracos. E até alguns dos que pareciam melhor dotados para colaborar na obra de compreensão humana que é preciso dar ao Mundo, costumam arrepiar caminho antes de findar a jornada. Depois de terem esgotado mais de metade da vida a descer dos deuses e a acreditar nos homens, empregam o resto do tempo, com o mesmo facciosismo com que, até há pouco, faziam o contrário, a desprezar os homens e a adorar os deuses.
FERREIRA DE CASTRO - A Tempestade, 10.ª edição, Lisboa, Guimarães & C.ª - Editores, 1980.
Do «Pórtico» de A LÃ E A NEVE (1947)
[...]
No começo do Verão, antes de demandar os altos da serra, ovelhas e carneiros deixavam, em poder dos donos, a sua capa de Inverno. E começava a tecelagem. O homem movia, com os pés, a tosca construção de madeira, enquanto as suas mãos iam operando o milagre de transformar a grosseira matéria em forte tecido. Constituía o acto uma indústria doméstica, que cada qual exercia em seu proveito, pois a serra não dava, nessas recuadas eras, mais do que lã e centeio.
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Um dia, tudo se revolucionou. Já não se tratava de melhores debuxos, de mais gratas cores, mas de coisa mais profunda -- da produção automática. Lá nas nevoentas terras inglesas o padre Cartwright inventara o tear mecânico. A água fazendo girar grandes rodas, começara a produzir o movimento dado, até aí, pelos pés do homem. Mas continuam a ser precisos os homens junto das novas máquinas.
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Os homens passavam os dias e as noites dentro das fábricas só saindo aos domingos, para esquecer o cárcere. Já não viam as ovelhas, nem ouviam os melancólicos tanger dos seus chocalhos nos pendores da serra, ao crepúsculo; viam apenas a sua lã, lã que eles desensugavam, cardavam, penteavam, fiavam e teciam, lã por toda a parte.
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No século XX, mais do que sons de flautas pastoris descendo do alto da serra para os vales, subiam dos vales para o alto da serra queixumes, protestos, rumores dos homens que, às vezes, se uniam e reivindicavam um pouco mais de pão.
FERREIRA DE CASTRO - A Lã e a Neve, 15.ª edição, Lisboa, Guimarães Editores, 1990.