Diário de Lisboa, Sábado, 17 de Novembro de 1945 - O MOMENTO POLÍTICO
A posição do escritor perante a Censura
segundo Ferreira de Castro
“O mal não está apenas no que a censura proíbe
mas também no receio do que ela pode proibir.”
Ferreira de Castro
Ferreira de Castro, uma das mais positivas presenças da actualidade literária portuguesa, o escritor português mais conhecido no estrangeiro, depõe hoje, como intelectual, neste inquérito sobre o panorama geral da vida portuguesa. Quando lhe perguntámos o que ele pensava sobre a influência da falta de liberdade de pensamento na vida nacional e na literatura em especial, o autor de «A Selva» diz-nos logo:
– A falta de liberdade de pensamento é a causa fundamental, a única mesmo, de tudo quanto se tem passado. O resto são simples consequências.
– A literatura?
– Foi uma das grandes vítimas. E, contudo, parece-me inútil afirmar – tão dito está – que é pelas suas obras de arte que um povo ou uma época se conceitua entre os outros povos ou no futuro. São as obras literárias e artísticas que constituem, verdadeiramente, o orgulho dos povos. Podemos dizer, com afoiteza, que o melhor que nos ficou das descobertas foi os «Lusíadas». Foram os «Lusíadas» que deram, perante a posteridade, uma elevação espiritual às descobertas, uma elevação que os próprios descobridores, na maioria dos casos, não possuíam. Sem os «Lusíadas», as aventuras marítimas portuguesas não teriam, hoje, os estudiosos, os entusiastas que têm, espalhados pelo mundo, e estariam reduzidas a umas frias páginas de história. E, contudo, todos sabem que, nestes últimos anos, especialmente desde 1935 em diante, uma obra como os «Lusíadas» talvez não pudesse ser publicada.
– Há outros casos?
– Há. Eça de Queiroz, o orgulho da literatura portuguesa, não era possível na nossa época. Houve o bom senso de não apreenderem os seus livros, porque isso provocaria uma grande emoção, mas foram proibidos ou apreendidos livros muito mais «brancos» do que os de Eça. A primeira ou uma das primeiras circulares da censura, enviada aos jornais em 1926, e que eu li, proibia, entre outras coisas, a transcrição de páginas de Alexandre Herculano, de Ramalho Ortigão, de Eça de Queiroz e, se bem me lembro, de Oliveira Martins. Herculano está no panteão e se os outros três escritores não estão lá, não é porque não o mereçam também.
Escrever um romance é um auto-suplício
– E dos escritores vivos?
– Até 1935, os censores, embora intervindo, de quando em quando, na literatura, faziam-no sobriamente. Daí em diante, porém, escrever um romance em Portugal era uma espécie de auto-suplício, desde que não se tivesse a mentalidade da situação dominante. E a verdade é que a grande maioria dos romancistas portugueses não a tinham nem a tem. Para escrever conforme os cânones da censura, o romancista devia fingir ignorar todas as grandes inquietudes do homem do nosso tempo e escrever uns romances convencionais, deslocados da sua época, uns romances sujeitos a tantas restrições, que seria fastidioso enumerá-las todas aqui, tanto mais que elas são bem conhecidas. Escrever assim é uma verdadeira tortura. Porque o mal não está apenas no que a censura proíbe mas também no receio do que ela pode proibir. Cada um de nós coloca, ao escrever, um censor imaginário sobre a mesa de trabalho – e essa invisível, incorpórea presença tira-nos toda a espontaneidade, corta-nos todo o élan, obriga-nos a mascarar o nosso pensamento, quando não a abandoná-lo, sempre com aquela obsessão: «Eles deixarão passar isto?». Acontece, às vezes, que nós nos sentimos puerilmente ricos, compensados de todos os esforços, só porque encontramos um conceito original, uma frase de bom talhe, uma cena bem traçada. Vamos, depois, a reler e verificamos que temos de nos despojar dessa pequena riqueza literária, que constitui a verdadeira recompensa de quem escreve, porque ela entrou, mesmo sem o querermos, em domínios proibidos. E – zás – toca a cortar, a substituir, a mastigar, a estragar! Eu não desejo aos que têm ideias diferentes das minhas, e que escrevem, uma tortura como esta que tem sido infligida aos escritores que não pertencem à actual situação politica.
– E depois de escritos os livros?
– Depois de escritos, é o que todos nós sabemos. Aquilino Ribeiro, cuja obra constitui um monumento da nossa literatura, enviou, a pedido do seu editor, que temia represálias, um livro seu à censura. E a censura proibiu o livro de Aquilino. Alves Redol, um novo romancista cheio de talento, tem outro livro proibido também. José Régio, notável poeta e escritor, de quem a sua geração se orgulha, viu um romance seu retirado da circulação. Cito três casos e podia citar muitos outros romances proibidos ou que os seus autores mutilaram forçados pela censura e isto sem me referir a obras literárias de outro género, que têm sofrido a mesma sorte. Raro é o livro português que não tenha tido, nos últimos dez anos, complicações com a censura. Ora, aconteceu que foi, justamente nesta última década, que apareceu, em Portugal, uma brilhantíssima plêiade de jovens romancistas de talento, em tão grande número como nunca houve entre nós. Simplesmente, eles não têm podido realizar-se integralmente, realizar a sua obra com a liberdade necessária a todo o trabalho de pensamento. Eles não têm podido fazer a obra que fariam noutras circunstâncias. E isto não representa somente um prejuízo para eles, mas, o que é muito mais grave, um enorme prejuízo para a colectividade.
– Isto prejudica o futuro?
– Sem dúvida alguma! Já disse que um país vale, especialmente, pela sua actuação intelectual e artística, pela sua herança de pensamento e arte. Isto é tão verdade que – doloroso contraste! – na recente guerra os governos mostravam mais cuidado em salvar pedras lavradas e telas pintadas, do que as próprias vidas dos homens. Ora o que se tem estado a fazer em Portugal é desfalcar o futuro do legado espiritual que lhe podíamos deixar. Pergunto: quais serão as obras e figuras do nosso tempo de que se orgulharão os portugueses daqui a cem ou duzentos anos? Se alguns nomes contemporâneos sobreviverem e merecerem a admiração dos vindouros, quais serão eles? Serão os dos que censuram as obras literárias ou os dos censurados? Parece inútil a resposta. Dos vários homens da mesa do Santo Ofício só um chegou até nós: o tolerante frade que examinou os «Lusíadas». E chegou até nós porque, em vez de proibir os «Lusíadas», recomendou a sua publicação…
– Em todo o caso, tem aumentado, de ano para ano, o número de livros publicados…Não é verdade?
– É. E cada vez se publica mais. Não sei quem disse no Parlamento inglês que os povos eram, hoje, mais inteligentes. Não serão mais inteligentes, mas são mais conscientes, mais cultos e sentem necessidade duma cultura cada vez maior. E, assim, o interesse pela leitura aumentou, apesar da radiofonia, dos grandes expressos europeus, dos aviões, da vida vertiginosa do nosso século, de que falavam alguns homens da minha geração e que, segundo eles, não deixaria tempo para ler. Ora, nos últimos dez anos, em todo o mundo, lê-se e publica-se muito mais do que se publicava e se lia até aí. Portugal não escapou à regra. O que acontece é que os livros nacionais publicados na última década estão, geralmente, deformados pelos seus próprios autores, receosos da censura; e dos estrangeiros só quase se tem publicado livros caídos no domínio público, isto é, livros com mais de cinquenta anos de idade, livros de mentalidade pretérita e, mesmo entre esses, há alguns proibidos. Muitas, se não a maioria, das obras-primas contemporâneas estrangeiras não podem ser lidas em Portugal. Sinto-me confrangido sempre que tomo conhecimento dos livros que a censura, por intermédio de circulares do Grémio dos Editores, proíbe os livreiros de venderem: são, em muitos casos, algumas das maiores obras do nosso século.
A responsabilidade dos censores
Agora Ferreira de Castro diz-nos:
– Há uma compreensível tendência para responsabilizar, pelo que acontece, os militares que fazem a censura. Eu não os conheço, nunca transpus a porta do edifício onde eles trabalham, nunca lhes pedi favor algum. Mas eu não ficaria bem com a minha consciência se não fosse justo, se não dissesse que a culpa não é deles. A culpa é de quem os manda e do sistema que nos governa. Eles são simples funcionários desse sistema. Pode ser que um seja mais tolerante ou compreensivo do que o outro, pode ser que o outro exagere, porque sendo o «mot d’ordre» recebido proclamar que o país não tem miséria, ele cortou um desenho para uma crónica de Diogo de Macedo sobre a Nazaré, porque, no desenho, um pescador tinha dois remendos na blusa… Podem acontecer muitas mais coisas de puro e absurdo critério individual, mas a verdade é que a responsabilidade não é deles e se eles se mostrarem pouco rigorosos na censura serão, por sua vez, censurados. E esse receio justifica os cortes inconcebíveis que algumas vezes fazem.
– Tenho muito prazer em falar assim – acrescenta Ferreira de Castro
– tanto mais que, por causa dum censor, deixei de escrever na Imprensa portuguesa.
– Como foi isso?
– Eu conto. Naturalmente, durante anos, eu, como todos quantos escrevem nos jornais, vi numerosos artigos meus cortados. Uma vez, cheguei a escrever três artigos sobre o mesmo assunto – sobre o Natal – e todos foram proibidos, porque neles eu aludia aos pobres que, nessa noite, tinham frio. Chega a parecer inverosímil, pelo que há de ingénuo nisto, que as esferas oficiais houvessem deliberado fazer acreditar o país e o estrangeiro que em Portugal ninguém tinha frio, nem fome, nem miséria, que havia, portanto, um Portugal que nós não víamos em parte alguma e que era diferente daquele que nós víamos todos os dias e em toda a parte. Tempos depois da supressão daqueles artigos, a censura cortava um novo trabalho meu. A história é simples. O jornalista Simões Dias, director da revista «O Cinéfilo», suicidara-se por amor a uma mulher, falecida tempos antes. É um caso raro um homem suicidar-se pela morte da esposa e o caso de Simões Dias era mais raro ainda, porque ele, salvo da primeira tentativa de suicídio, dois meses depois voltava a atentar contra si – e desta vez fatalmente. A mãe de Simão Dias contou-me, a chorar, desesperadamente, o doloroso episódio e eu, compungido pela dor dessa infeliz mulher, escrevi um artigo sobre os sentimentos românticos do seu filho, um artigo onde nem sequer empregava a palavra «suicídio» por saber que ela não era grata à censura. Apesar disso, o artigo foi cortado. Era uma falta de respeito que eu dificilmente posso conceber que se tenha pelo trabalho de alguém. Nesse dia resolvi deixar de escrever na Imprensa portuguesa. Se aparece, às vezes, alguma coisa minha é um trecho de qualquer obra inédita. Mas se, por este lado, eu arrumava o caso, não podia arrumar, assim facilmente, a parte referente aos meus livros. Eu declaro aqui, com uma melancolia enorme, que só pode ser compreendida por outros escritores, que a minha obra literária foi irremediavelmente prejudicada pela existência da censura e que, mesmo vindo agora a liberdade, eu já não poderei recuperar o tempo perdido. Os assuntos que mais me empolgaram, aqueles em que eu poderia realizar completamente a minha personalidade, fui-os abandonando sucessivamente, por não serem compatíveis com as instruções a que a censura obedecia. A satisfação de descobrir o argumento dum romance sucedia sempre o desespero de ver que não o podia tratar.
– Pode exemplificar alguns deles?
– Claro que posso. Até 1935, como já disse, havia uma certa tolerância para os romancistas. Foi até aí que eu escrevi, embora impondo-me, eu próprio, várias reservas, quatro dos meus cinco romances publicados. Depois, o regime existente foi-se julgando mais forte e intervindo em todo o papel impresso. Em 1936, quando acabei «O Intervalo», encontrei-me perante este dilema: ou mandá-lo à censura, acto que eu considero vexatório para um escritor e que, de resto, se tornaria inútil, porque o romance seria, sem dúvida alguma, proibido; ou publicá-lo sem censura e vê-lo apreendido e o editor sofrendo as respectivas penalidades. Meti, por isso, o livro na gaveta, depois de dois anos e meio de trabalho.
– Qual era o assunto do livro?
– «O Intervalo» era o primeiro romance duma série intitulada «Biografia do século XX» e pretendia ser, realmente, uma biografia romanceada, um «panteras» de todos os principais acontecimentos da Europa, uma espécie de epopeia das lutas, dos sofrimentos e das aspirações dos humildes desde o começo do nosso século até os nossos dias – até que eu morresse. Era o documento duma época, de sangue e dor, de esperanças e de desesperos, de desesperos e de esperanças, um documento feito de compreensão humana. Mas tive de desistir e vejo-me, hoje, com a saúde abalada e não sei se com vida suficiente para recomeçar uma obra tão longa. Talvez que, o país, pelo meus fracos ou nenhuns méritos, nada haja perdido com isso; mas perdeu e está perdendo, com absoluta certeza, pelo facto de muitos outros escritores se encontrarem em idênticas circunstâncias.
– Que fez depois disso?
– Tentei, com a tortura a que já me referi, três outros romances. «A Hipótese», «Classe Única», (romance dum navio) e um outro que não tinha, ainda, título. Desisti também de todos eles, porque ao quarto, quinto capítulos, verificava que ia por caminhos proibidos… Em 1940, decidi escrever um romance que fosse publicável sem ter de sofrer a censura. E escrevi «A Tempestade». É uma dessas obras que se fazem quase com raiva para a própria obra, por não ser aquela que desejamos fazer. «A Tempestade» dá bem uma ideia da influência que a falta de liberdade de expressão exerce na literatura. Quem ler os meus outros romances mal me reconhecerá neste. Tudo quanto constitui a minha personalidade está, ali, forçado, ou melhor, está desfigurado.
– Os escritores queixam-se, sobretudo, da ética que lhes é imposta…
– Exactamente. É ingénuo um governo imaginar que, por decretos ou pela força ou pela censura, consegue impor a sua mentalidade ao povo e aos seus homens de pensamento. E, contudo, muitos governantes têm cometido essa ingenuidade. Nestes últimos anos temos lido, em Portugal, muitas vezes, a afirmação de que o Estado trabalhava para transformar a mentalidade nacional. Essas afirmações, feitas por alguns dos mais responsáveis elementos da situação, faziam-nos pensar que eles pouco conheciam da psicologia humana.
– E então?
– Então…a regra é, justamente, o contrário. A regra é o homem, sobretudo o homem novo, ser contra a mentalidade do governo dominante. Ao sair-se da adolescência. Discorda-se, quase sempre, de quem nos domina, desde o ambiente familiar ao ambiente político. É geralmente nessa idade que se formam as nossas ideias. Uns andam para trás, outros para a frente, mas com a política do governo ou com as ideias dos pais são poucos os que acertam o passo. E quando a ideologia governamental está na retaguarda de todas as outras, os novos marcham para a vanguarda. As excepções a esta regra são raríssimas e sempre por motivos mais profundos que a mentalidade dum sector. Não é de estranhar, portanto, que a actual situação criasse o grande entusiasmo oposicionista que vai pelo país. Senão houvesse muitas outras razões, haveria, pelo menos, essa. De resto, a maioria do país foi sempre contra a situação. Todos nós o sabíamos e parece que o governo também, pois, nos primeiros anos, os seus próprios adeptos duvidavam do seu amanhã imediato e eram mais tolerantes do que ultimamente foram.
Após uma pausa Ferreira de Castro recomeça:
– Mas voltemos à questão da ética. Aceite ideia de converter o país à ética governamental, tentou-se enfileirar os escritores na mesma doutrina única, através da censura e através de prémios, como se fosse possível meter literatura, que é, por sua natureza e para bem colectivo, um elemento de antecipação, num corpo de doutrinas decrépitas, postas, há muito, de parte nos outros países. Ora, essa ideia de pretender que uma arte, como a Literatura, que, na sua essência, joga com valores de posteridade, seja apenas o reflexo dum regime, ao cabo e ao fim efémero, por muito que dure, dá-nos bem uma amostra do critério a que tem estado submetida a inteligência nacional.
A tendência da maioria dos intelectuais
– A tendência da maioria dos intelectuais é para a direita ou para a esquerda?
– Para a esquerda! E, duma maneira geral, foi sempre, em todos os tempos, para a esquerda, mesmo quando não se usava designação. Talvez não seja exagerado dizer que noventa e nove por cento dos grandes intelectuais foram sempre contra as injustiças do forte contra o fraco, contra os preconceitos absurdos, contra as ideias feitas. É graças a eles que, em certos aspectos, a Humanidade tem avançado. No seu conjunto, a literatura tem sido sempre um grito de justiça através dos séculos. Esse sentimento de justiça aplica-se, conforme a época, a diferentes expressões sociais. No fim do século XVIII e no começo do XIX, por exemplo, os românticos batiam-se pela ideia de que um plebeu e um aristocrata eram iguais, com a diferença de que, muitas vezes, aquele era, pela inteligência, muito superior a este. No século XX, nós, mais realistas, lutamos pela ideia de que um pobre tem os mesmos direitos à vida, ao conforto da vida, aos prazeres da vida que tem um rico. E isto interessa à Humanidade inteira, incluindo os filhos daqueles que, hoje, nos combatem. Para estes mesmo é preferível uma sociedade em que tenham o seu lugar assegurado, do que a hipótese do legado da fortuna paterna, fortuna que tantas vezes se desfaz antes de chegar às mãos dos herdeiros ou se pulveriza nas mãos destes, deixando-os na miséria como os outros.
– O que pensa do estado psicológico do país?
– Penso que o país está cansado da actual situação. Os Portugueses encontram-se, presentemente, numa guerra de argumentos – e um bom argumento é a coisa que mais se parece com a verdade, sem muitas vezes o ser. Mas uma coisa é certa, irrefutavelmente certa, por cima de todos os argumentos: a maioria do país está fatigada da actual situação.
– Fala-se em ingratidão…
– Tenho ouvido também dizer isso. Todos os governantes se queixam do mesmo. Como o acto de governar é, geralmente, um voluntariado – e que disputado voluntariado! – os governados entendem que não devem louvar os governos pelo que eles fazem e sim criticá-los pelo que eles não fazem e que era seu dever fazer. No presente caso português há outras razões. Talvez, para explicá-las, baste eu extrair algumas linhas duma crónica que, em 1935, enviei de Jerusalém ao jornal «A Noite», do Rio de Janeiro. Ei-las: «Para chegar até aqui (a Jerusalém), tive de percorrer algumas rodovias magníficas, que os ingleses construíram na Palestina. Contudo, os palestinianos não estão contentes com essas estradas: entendem que elas são excelentes e que eram muito precisas, mas pensam que tiveram um preço demasiado caro – o preço da sua liberdade. E os palestinianos crêem – têm-mo dito – que, mais cedo ou mais tarde, mesmo sem o mandato da Inglaterra, eles próprios viriam a construi-las – e por um preço infinitamente mais barato…».
– Pensa, então, que…
– Eu gosto de falar sempre à inteligência e não às paixões dos homens. E, assim, permito-me colocar perante os homens mais inteligentes da situação a hipótese duma inversão de papéis. Suponhamos que um partido, igual ao deles, mas contrário a eles, se instala no poder durante 20 anos. E nessas duas décadas constrói estradas, portos, edifícios escolares, mesmo hospitais, tão bons como os de Nova York. Mas, ao mesmo tempo, tira aos actuais situacionistas toda a liberdade de exprimir a sua opinião e os persegue e os deporta e os deixa injuriar e cria, entre eles, durante 20 anos, um regime de medo. Ao cabo desse tempo, os actuais situacionistas poderiam falar, com gratidão, das obras que o partido adverso tivesse realizado? Que cada qual ausculte a sua consciência e responda a si próprio.
Ferreira de Castro conclui:
– O governo tem a força do seu lado e pode continuar no poder. Mas, eu penso que a pior coisa que o governo pode fazer às suas próprias ideias, até à sua história, que, pelo que leio, o preocupa, é continuar no poder. Depois deste singular plebiscito, que se acaba de fazer no país, cada dia que o governo se demora no poder «gastar-se-á» mais. O moral de muitos dos que o apoiam ir-se-á enfraquecendo e já deve estar mesmo enfraquecido, pois é humano, é inevitável que assim aconteça. Estimulado pelas críticas que se fazem agora, o governo pode lançar-se na realização de grandes obras, mas, faça ele as obras que fizer, o país não deixará de se sentir cansado e verá sempre nessas realizações apenas a ânsia do governo se manter no poder. Isto tem acontecido em várias épocas e em quase todos os países. Depois do que se está a passar, muitas das próprias pessoas que apoiam o governo ficarão, decerto, com a sensação de que detêm uma coisa que não lhes pertence legitimamente, dada a forma como se fazem as eleições. E, do lado oposto, a maioria do país ficará com a sensação de que lhe tiraram uma coisa que legitimamente lhe pertencia. Será este o panorama do país. Não sou político. Sou apenas um intelectual que deseja, que luta por uma Humanidade menos infeliz do que ela é. Mas confesso que não compreendo esse patriotismo que não cessa de clamar, perante os povos livres do Mundo, que nós, portugueses, somos tão inferiores a eles que só podemos viver como um rebanho de escravos.
Nota – Ortografia actualizada.
(Texto transcrito pela Célia Alexandra Martins Costa, das Baralhas, Castelões, Vale de Cambra)